terça-feira, junho 07, 2005

Calores

"Boa tarde! Este, é o telejornal.
- Mais um atentado no iraque provoca a morte de pelo menos 18 pessoas; Deflagraram 2 fortes incêndios esta manhã na zona da Figueira da Foz; - Despesas militares mundiais ultrapassaram o bilião de dólares em 2004, os EUA contribuíram para mais de metade dessa verba; - Música mais cara, o aumento do IVA também se aplica aos produtos musicais em Portugal.
Mas antes de mais nada. ESTÁ CALOR NO NOSSO PORTUGAL! Siga falar sobre isso durante meia hora..."

Não terá sido exactamente assim o início do jornal da tarde na televisão de hoje (eu perdi a introdução e só fui a tempo de ver a câmera a aproximar-se de um pivot com "ar de caso" estampado na cara), mas podia bem ter sido.
Senhores da TV, eu sei que está calor! É uma da tarde, e sente-se o calor. Aliás, já tinha tido a oportunidade de o constatar logo ao acordar e, minutos mais tarde já no elevador, recebi a confirmação através do vizinho do 3º frente.

["Isto hoje tá uma brasa!..." disse o arquitecto ao carregar no zero. "É verdade..." devolvi eloquentemente. Ele não se fica atrás e dispara. "E ainda só são 9! Tou imaginando lá prá hora do almoço como será isso aí fora." (O gajo é brasileiro. Mais um... É capaz de ser larilas, ainda não percebi bem. Trinta e muitos, mora sozinho e tal... Pelo sim pelo não evito olhar-lhe directamente nos olhos e sorrir ao mesmo tempo, não vá o arquitecto interpretar mal os meus sinais de cordialidade estritamente vizinhesca. Especialmente naquele elevador, que agora a cada passo encrava... Nada como uma boa dose de claustrofobia com um cheirinho de homofobia, para começar bem o dia) E eu, "Ah pois! Nem quero imaginar... A mim não me apanham na rua a essa hora!" Num tom mais sério o bolha aconselha "Mas se tiver de sair, aí compre uma aguinha bem geladinha e vá bebendo." "Sim sim, eu sei..." (entretanto já estávamos a sair porta do prédio fora e sentimos o "bafo pesadão") "Pfuuu... Olhe, um bom dia arquitecto." Disse-lhe. "Bom djiá pra você!" Rematou ele ao afastar-se, "Tchau filho..." Pensei eu "Vai pela sombra."]

E agora enfadado, ponho-me a adivinhar o que iria na cabeça do responsável ao decidir qual seria a notícia de abertura do jornal de hoje:

[Sala de reuniões, 11 da manhã. Uma mesa repleta de súbditos servis ávidos de subir na carreira e um par de estagiários invisíveis. O director de redação acabado de entrar, pega na papelada, e é ainda em pé, alternando a leitura em voz alta com o estiloso abocanhar da haste dos seus oakley enquanto escuta o seu acessor Ferreira, que a reunião se processa.]
"Começaram a lavrar 2 incêndios na zona da Figueira da Foz - os quais lá para a noite devem já ter ardido bem e serão motivo para notícia de abertura. Umas pessoas desesperadas umas velhotas a chorar porque foi um grande susto e tal, o drama o horror... exacto ok, depois abre-se com esta no das oito então. "Mais um atentado no Iraque provova a morte de pelo menos 18 pessoas"- Outro? Eh pá atentados no Iraque já não é notícia caraças! Hã? Pois realmente, 18 pessoas ainda é muita gente sim... e... morreram estrangeiros ou quê? Não? Pá então esquece, põe-se essa lá pró meio, antes do desporto ou assim... Ferreira, como é que é? O governo não anunciou mais nenhuma medida de contenção nem nada assim importante? Não? Pá então e escândalos assim tipo o do ministro das finanças? Tb não? Ah e o Benfica? Já tem treinador? Não? E da Casa Pia nada né?... Pá então não sei olha, não há notícia de abertura hoje pronto fds." Imagino que às tantas um estagiário num acesso de coragem inigualável balbucia "Ss-se me permite senhor director doutor, hoje está muito calor, sss-se calhar podia-se falar do calor..." O senhor director adora. O Ferreira é prontamente acusado de incompetência e é despedido. O estagiário passa a efectivo no seu lugar. "Abra-se com o calor! Ao trabalho pessoal! Eu volto à uma, vou pró ténis..."

Mas exercícios de adivinhação à parte. Eu sei que o tempo é provavelmente o único tema de conversa comum a todas as pessoas e locais do planeta, e que qualquer pessoa se identifica e participa activamente numa conversa sobre ele. Nos telejornais o tempo "vende", audiências e tal... mas porra! 2 ou 3 minutos não bastarão para constatar que faz calor?! Será que cada vez que passamos dos 30 graus têm que ir falar com o responsável da protecção civil de cada um dos distritos "mais afectados" e pô-los um após outro a dizer exactamente a mesma coisa?! Aqueles conselhos do tipo "beba muitos líquidos" ou "ponha um boné se andar ao sol!" É senso comum gente! Notícia de abertura?!
Bah!...

Por falar em bah, aquela notícia acerca do IVA sobre a música também aumentar para 21% só passou no fim do jornal. Está portanto, ao nível daquelas peças sobre o nascimento de um urso polar no zoo de Moscovo ou do anúncio da estreia da nova telenovela das 6.
Antes dos créditos finais ainda houve tempo para a metereologia. "Está calor em todo o país, nas zonas mais quentes as temperaturas podem atingir os 35º centígrados. Tome as precauções necessárias." Obrigado senhor pivot, bastava isso.